Da cozinha ao bem-estar: o efeito emocional do ato de cozinhar

GASTRONOMIA & LIFESTYLE

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12/31/2025

Em meio à rotina acelerada, ao crescimento do delivery e ao hábito cada vez mais comum de fazer refeições diante de telas, uma prática cotidiana volta a ganhar protagonismo: cozinhar a própria comida. Mais do que preparar refeições, o ato de cozinhar tem sido reconhecido como uma ferramenta de cuidado emocional, capaz de promover bem-estar psicológico, reconexão com o corpo e melhora na relação com a alimentação.

A abordagem, conhecida como mindful cooking ou “terapia na cozinha”, propõe transformar o preparo dos alimentos em uma experiência de atenção plena. A prática envolve desacelerar, observar sensações, aromas, texturas e sons, trazendo a mente para o momento presente. Os benefícios vão além do prato e alcançam a saúde mental, os vínculos sociais e a percepção corporal.

Segundo o psiquiatra Marcus Zanetti, doutor em ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da relação entre nutrição, eixo intestino-cérebro e saúde mental, a sociedade perdeu o contato com o processo alimentar.

“A gente perdeu o momento presente do cozinhar. Hoje delegamos todo o processo ao delivery, enquanto seguimos conectados ao celular. Isso nos distancia das necessidades do corpo e nos expõe a fatores invisíveis como estresse crônico, excesso de estímulos e até toxinas ambientais”, afirma.

Cozinhar ativa os sentidos e reduz o estresse

Para Zanetti, cozinhar envolve uma ativação sensorial completa, algo raro na vida moderna. O toque dos ingredientes, os cheiros, as cores, os sons da panela e o paladar criam uma experiência neurológica rica.

“É uma verdadeira massagem dos sentidos. Do ponto de vista neurológico, isso tem um impacto enorme, ajudando a reduzir ansiedade e a sair do modo automático”, explica.

Essa ativação sensorial é um dos pilares do mindful cooking, segundo a nutricionista Vera Salvo, co-coordenadora do projeto nacional de mindful eating do Departamento de Psicobiologia da Unifesp.

“A cozinha é um laboratório perfeito de atenção plena. Ali você tem aromas, cores, sons e texturas. Usar os cinco sentidos é uma forma muito potente de se ancorar no momento presente”, afirma.

De acordo com a especialista, essa prática é especialmente benéfica para crianças, mas funciona igualmente para adultos. Atos simples como cortar legumes, ouvir o alimento refogar ou manusear os ingredientes já ajudam a reduzir a aceleração mental e a reconectar corpo e mente.

Relação com a comida e reeducação do paladar

Outro ponto destacado pelos especialistas é o impacto da indústria de alimentos ultraprocessados sobre o cérebro. Zanetti observa que esses produtos exploram intensamente o sistema de recompensa, criando sabores hiperestimulantes.

“O cérebro se acostuma a estímulos muito intensos. Quando a pessoa prova um alimento simples, acha sem graça. Isso não é natural, é condicionado”, diz.

Cozinhar em casa ajuda a reeducar o paladar, reduzir a dependência de ultraprocessados e fortalecer uma relação mais equilibrada com a comida. Durante a pandemia, esse potencial terapêutico ficou ainda mais evidente.

“Muitas pessoas encontraram na cozinha um refúgio contra o excesso de pensamentos. Cozinhar com atenção é uma forma prática de mindfulness aplicada ao cotidiano”, afirma Vera Salvo.

Educação alimentar e redução da autocrítica

Para a nutricionista Adriana Kachani, doutora pela USP e referência em nutrição funcional, o mindful cooking é uma ferramenta poderosa tanto de educação alimentar quanto de cuidado emocional.

“Cozinhar com atenção plena é transformar uma atividade rotineira em algo especial. Quando a refeição vira um momento significativo, a pessoa planeja melhor, escolhe melhor os ingredientes e isso impacta diretamente a saúde”, explica.

Ela destaca que a prática não exige receitas sofisticadas nem habilidades culinárias avançadas.

“Pode ser algo simples, como lavar o arroz com atenção ou montar um prato colorido. O foco não é performance, é presença.”

Além disso, cozinhar ajuda a reduzir rigidez, perfeccionismo e autocrítica — características comuns em pessoas com relação conflituosa com a comida.

“Nem sempre dá certo, e tudo bem. Cozinhar desenvolve flexibilidade, criatividade e uma relação mais gentil consigo mesmo”, afirma Kachani.

Impactos emocionais e sociais

Em pesquisas realizadas por Vera Salvo em unidades básicas de saúde da periferia de São Paulo, mulheres participantes de programas de mindfulness relataram mudanças profundas que iam além da alimentação.

“Elas perceberam que estavam aprendendo coisas para a vida. Mudaram a relação com o corpo, com os filhos e com o parceiro. A transformação acontece de dentro para fora”, relata.

A dimensão afetiva da comida também é destacada por Zanetti, que lembra como sabores podem resgatar memórias, identidade e pertencimento.

“A comida conecta com história, afeto e quem somos.”

Comer em companhia potencializa esse efeito. Não por acaso, o Guia Alimentar Brasileiro valoriza refeições compartilhadas, especialmente em datas como o Natal, quando o alimento se torna um elo de aproximação e vínculo social.

Iniciativas que unem culinária e saúde mental

Essa visão tem inspirado iniciativas estruturadas no Brasil. Um exemplo é o programa “Therapy by Cooking”, lançado pelo Le Cordon Bleu São Paulo. A imersão propõe a culinária como prática de equilíbrio emocional, mental e físico, integrando conceitos de mindfulness, neurogastronomia e nutrição consciente.

Segundo especialistas, o principal aprendizado do mindful cooking é simples: não importa o que se cozinha, mas como se cozinha. A atenção precisa estar presente tanto no preparo quanto no ato de comer.

Em um mundo cada vez mais acelerado, cozinhar deixa de ser apenas uma obrigação doméstica e passa a ocupar um lugar importante no cuidado com a saúde mental, promovendo presença, conexão e bem-estar no dia a dia.

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